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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Para filósofo, ex-presidente não consegue discernir o certo do errado para além do objetivo imediato do palanque


Alan Sampaio / iG Brasília
Ex-presidente Lula
Em discurso recente em São Paulo, tentando levantar a moral da militância, Lula insistiu na autossuficiência do PT. Chegou mesmo à seguinte formulação: “E quando alguém nosso errar, nós mesmos punimos. Nós não precisamos que os outros venham dar lições na gente”. Sim, ele disse isso! Caso isso fosse dito na época do PT pré-mensalão, eu talvez não prestasse atenção. Todavia, dito agora, soa alto e, ao meus ouvidos, não soa bem.

Na época do mensalão, Lula foi à TV para dizer que iria “cortar na carne” do PT, eliminando os que haviam errado. Quando depois, mesmo com o desprestígio ocorrido pelo mensalão, foi eleito para mais um mandato e, em seguida, virou celebridade internacional por conta da correta política de transferência direta de renda, Lula acreditou que seria interessante fazer uma operação de tipo estalinista, ou seja, reescrever a história.
Por que ficar com a mancha do mensalão em uma biografia que estava sendo, finalmente, preenchida com tanto reconhecimento? Lula disse então que iria provar que o mensalão não havia existido. Daí por diante, todo o PT passou a seguir esse discurso: o mensalão não poderia mais ser admitido por ninguém. O ano de 2005 teria sido diferente daquele que todos vivemos, vimos e cheiramos – e o cheiro não era só de corrupção, mas de ataque à democracia!
Houve imperador romano que mudou um dia do calendário, para benefício próprio. Lula quis tirar um ano todo do calendário. Mas, de um modo muito parecido com o que a imprensa registrou, o ano de 2005 fixou seu pé onde estava mesmo. Assim, passado um tempo, o mensalão caiu para ser julgado no STF. O volume de documentos existentes não permitia ao STF não julgar e não condenar ninguém.
Todavia, Lula, por sua vez, não precisou falar mais nada. Ele já havia dito o que queria que ocorresse, que o mensalão desaparecesse da história. Desse modo, o PT passou a se comportar – desnecessariamente – como um agrupamento de pessoas ranhetas e magoadas. Os petistas se viram injustiçados, uma vez que o STF resolveu mesmo condenar vários de seus membros pelo mensalão. Os petistas se revoltaram: “como que Joaquim Barbosa, posto no STF por indicação de Lula, insistia ainda em falar de mensalão? Não teria ele escutado Lula dizer que o mensalão não havia ocorrido? Barbosa havia ficado surdo?”
Barbosa e outros ministros do STF não puderam fazer o que os petistas queriam, segundo a nova ordem dada por Lula. Não havia como! E então chegamos no que chegamos. Agora, por esses dias, inicia-se uma reconsideração do julgamento e da pena, obedecendo a praxe legal, o que implica avaliar os recursos movidos pelos réus. Justamente nesse momento, então, Lula deixa claro para os petistas que o PT não tem que ver seus filhos punidos pela justiça uma vez que eles já estão sendo educados pelos pais dentro de casa.
Lula age como se não soubesse que o PT é um partido dentro do Brasil. Para os militantes, ele fala sobre o PT como se este fosse legitimamente uma agremiação que faz as próprias leis e pune os que erram, segundo uma justiça interna soberana. É como se ele dissesse: “fora do PT não há uma justiça em que acreditamos e que pode nos julgar”.
Por ser governo, o PT teria então ultrapassado os limites de nossa república e, dessa maneira, não precisaria mais colocar qualquer um de seus militantes sob o tacão dessa justiça. Lula inaugura dessa forma um estranho pensamento, talvez inspirado no que Marx e Engels denominaram de socialismo feudal. Meio modificado. Ou melhor, modificado o suficiente para nada ter de socialista, ficando só com a parte feudal. No feudo, qualquer ato que gerasse alguma acusação, era julgado como crime (ou não) segundo a origem do acusado e de acordo com as leis feitas no momento do julgamento pelo senhor feudal.
Nenhuma instância outrora superior ao feudo tinha direito no interior do feudo. Neste, imperava o casuísmo do senhor feudal. De certa forma, esse é o entendimento de Lula a respeito da legitimidade de julgamento de uma falta, quando se trata de alguma coisa feita por um membro do PT. O partido mesmo pune quem erra. Só o partido!
Claro que Lula não falou o que estava efetivamente querendo dizer ao mencionar a palavra “errar”. A dubiedade na boca de político do tipo do Lula é proposital.
Caso posto na parede pela imprensa democrática, irá dizer que falou em erro genericamente, não a respeito de crimes que estão já previstos nas leis brasileiras. Mas, para os ouvidos dos militantes, falou o que pode ser entendido da seguinte maneira: “se há mensaleiros, então somos nós dentro do PT que os punimos, não cabe a ninguém, fora do partido, querer punir o petista. Nem mesmo Barbosa! Ou: muito menos Barbosa!”
Essa formulação é ridícula, mas não nos enganemos, o pensamento do militante político (à esquerda e à direita, tanto faz) é suficientemente abobado e muito bem azeitado para entender antes de tudo essa segunda formulação. O militante é montado para endossar essa ideia.
Líderes como Lula possuem essa empatia com a militância criada por ele mesmo: pode fazer dois discursos em um só. De um modo aparentemente maluco, o militante escuta os dois discursos e ele os toma segundo uma regra muito especial: “Lula pode ser visto como falando de erro de um modo geral, mas fez isso para disfarçar, para tapear a ‘imprensa burguesa’, pois no fundo ele está dizendo, mesmo, que nós petistas somos legitimados em nossas ações unicamente pelo nosso objetivo, definido pelo partido”. Essa esquizofrênica simbiose entre Lula e sua militância é conhecida dos estudiosos da psicologia social.
Vargas comandou a política com esse tipo de dubiedade. Durante muito tempo Brizola fez o mesmo. Paulatinamente Lula foi se modificando em direção a esse figurino. Lula se tornou aquele que pode dizer que não disse o que disse ou que disse o que não disse. Lula já não faz isso de maneira racional. A confusão na sua cabeça o torna um líder altamente poderoso em tempos como os nossos, de mudanças tecnológicas muito rápidas e de um início de ampliação na diferenciação de gostos, atitudes e vocabulários dos eleitores.
Lula é perigoso porque é uma máquina, no limite, que se imagina autogovernada, mas que está funcionando há tanto tempo só no sentido de “tocar o partido em eleições”, que já não consegue discernir o certo do errado para além do objetivo imediato do palanque.
* Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ, http://ghiraldelli.pro.br

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